Primeira aluna 100% surda se forma na Faculdade de Direito da UFU: 'Me sinto gigante', diz estudante
03/08/2025
(Foto: Reprodução) Márcia precisou conciliar trabalho e estudos ao longo da faculdade para conseguir se formar
Reprodução/Arquivo Pessoal
Aos 53 anos, Márcia Porto realizou um sonho que muitos consideravam improvável: ela foi a primeira aluna 100% surda a se formar em Direito na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Surda desde o nascimento, a trajetória de Márcia foi marcada por desafios, preconceitos e falta de acessibilidade. Mas também por força, acolhimento e conquistas que hoje servem de inspiração para a comunidade acadêmica.
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Ainda criança, a surdez dela foi descoberta pela família de forma dolorosa.
“Minha mãe não sabia que eu era surda. Na época não existia teste. Ela achava que eu era teimosa ou ‘pirracenta’, e me batia muito por não obedecer”, disse.
Sem diagnóstico e com responsabilidades adultas desde cedo, ela teve uma infância difícil. Aos 9 anos foi entregue a outra família, que prometeu tratá-la como filha, mas a realidade foi diferente. “Me colocaram para cuidar dos filhos e da casa. Eu chorava muito.”
Apesar das dificuldades, Márcia sempre insistiu em estudar. Teve a sorte de encontrar professoras que acreditaram nela e a ajudaram a aprender a ler e se expressar oralmente.
“Eu achava minha voz igual à dos outros, mas os colegas riam de mim. Um dia, um menino perguntou por que eu falava daquele jeito e só então percebi que minha voz era diferente.”
A virada começou com o apoio da nova família e, anos depois, com o fortalecimento da luta por acessibilidade no Brasil. “Minha vida melhorou depois da Lei Brasileira de Inclusão. Antes era tudo mais sofrido.”
🔍 A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, foi criada em 6 de julho de 2015. A lei garante e promove igualdade de condições com as demais pessoas, o exercício dos direitos e liberdades fundamentais por pessoas com deficiência.
Durante a pandemia, ela ingressou no curso de Direito da UFU, onde enfrentou mais um desafio: o ensino remoto. Com poucos intérpretes de Libras disponíveis e professores que não sabiam como adaptar as aulas, Márcia se viu sozinha muitas vezes.
“Mas Deus está comigo. E meus colegas foram incríveis, sempre me ajudando. Em atividades em grupo, me incluíam, mandavam mensagens quando ia ter palestra. Alguns até digitavam a fala dos palestrantes no WhatsApp e me enviavam.”
Na trajetória acadêmica, duas figuras se tornaram fundamentais: as intérpretes Letícia Leite e Nathália Scalabrini. “Elas são como mães, irmãs, professoras, psicólogas, conselheiras... nossa relação vai além da tradução. É amizade para a vida toda”, afirmou Márcia.
“A questão da superação e da resiliência é o que mais me chama atenção em relação à Márcia. Primeiro por ela ser uma mulher, surda, com 53 anos, que ainda trabalhava e muitas vezes chegava em casa depois da meia-noite. Mesmo assim, conseguiu romper com a barreira linguística. Ela nunca faltava às aulas e sempre era aprovada com notas excelentes. Em certo momento, a gente até esquecia que ela era surda”, contou Letícia Leite.
Letícia, Márcia e Nathália no dia da formatura
Reprodução/Arquivo pessoal
Apaixonada pelo conhecimento e determinada a ajudar outros surdos a conhecerem seus direitos, Márcia não escolheu o Direito por acaso. “Como fiz ensino técnico em contabilidade, já tinha tido contato com a legislação e me encantei. Quis entender a lei para ensinar aos meus colegas surdos como se defender.”
Ela fez estágio no Escritório de Assessoria Jurídica Popular da UFU (Esajup), onde aprendeu sobre a importância da conciliação e da informação acessível.
“Saber que existe uma forma mais rápida de resolver um conflito sem passar por um longo processo me deu ainda mais vontade de compartilhar esse conhecimento.”
Mesmo formada, ela reconhece que ainda há muitos obstáculos. “A maior dificuldade foi a falta de acessibilidade fora da UFU. Mesmo em eventos dentro da universidade, se não fossem oficiais, as intérpretes não podiam me acompanhar. A Nathália às vezes via que eu queria muito participar e ia comigo por amizade.”
Hoje, Márcia comemora uma das maiores conquistas da vida: ser bacharel em Direito pela UFU.
“Ninguém tira isso de mim. Entrei numa universidade federal, e isso me faz sentir gigante.”
Márcia estava junto de seu cachorro na formatura
Reprodução/Jussara Coelho
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